segunda-feira, 21 de março de 2011

Diabo - O Mal

Satanás, Belzebu, Belial, Espírito Imundo, o Tentador. O diabo teve muitos nomes e faces e já inspirou de obras-primas literárias a canções de rock. Conhecer sua história ajuda a responder a pergunta: por que a humanidade precisa dele?

Avenida do Inferno, 666

Para o médico parisiense Jacques de Gheyn, que viveu no século 16, ele era um monstro de chifres e olhos vermelhos faiscantes, que o obrigava a cozinhar cadáveres. De acordo com a jovem francesa Chrétienne, de 23 anos, tratava-se de um cavalheiro de trajes e chapéu negros, que a desvirginara em 1624. Do ponto de vista do filósofo Voltaire, não passava de uma simples superstição, e segundo o pai da psicanálise, Sigmund Freud, não era outra coisa além de impulsos negativos longamente reprimidos. Como é possível que existam tantas imagens do diabo? O que ele é, e por que está tão presente na história da humanidade e nas principais civilizações de todos os tempos e lugares?

Uma coisa é certa: o capeta é uma figura importante. Por causa dele, hereges foram queimados nas fogueiras da Inquisição. Grandes escritores o transformaram em clássicos da literatura - caso do drama Fausto, de Goethe, ou do conto São Marcos, de João Guimarães Rosa. Isso para não falar nas referências da cultura pop: nos quadrinhos, Hellboy e Motoqueiro Fantasma; na música, Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, e Rock do Diabo, de Raul Seixas e Paulo Coelho. Sua história, contudo, é tortuosa, e sua figura, esquiva. Afinal, o que esperar do demônio? Como já dizia o poeta francês do século 19 Charles Baudelaire sobre o personagem: "O maior truque do diabo foi convencer-nos de que não existia". Fato ou ficção, esta é uma história e tanto.

Para o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, o diabo é a representação concentrada do mal. Mas ele não está restrito ao Oriente. O demônio existe nas mais diversas civilizações, ocidentais ou orientais. "É uma figura universal. Está presente, de formas variadas, no catolicismo, no judaísmo, no islamismo, no hinduísmo, no budismo e no taoísmo", afirma Mateus Soares de Azevedo, mestre em História das Religiões pela Universidade de São Paulo. Mas por que seres humanos de lugares tão diferentes acreditam em algum tipo de diabo? O historiador das religiões Henry A. Kelly, professor da Universidade da Califórnia, tem uma explicação. Para ele, essa crença nasceu da percepção de que vivemos sob um dualismo irreversível: bem ou mal, belo ou feio, luz ou sombra. O mundo, então, ficava mais simples de entender: se existe o bem e o mal nitidamente separados, é possível criar uma ética, elaborar regras claras de comportamento que definam as atitudes que são aceitáveis. É por isso que, como diz o professor Kelly, o principal papel do diabo foi o de perdedor. "O ser humano precisa reafirmar que pode vencer obstáculos temíveis. Tais dificuldades foram representadas por Satã."

Em quase todas as grandes religiões existe uma história que explica a origem do mal. Essas narrativas têm vários pontos em comum. De acordo com a tradição semita ocidental, ela começa quando um ser maléfico cai em desgraça com Deus e se torna inimigo do homem. Na Bíblia, ele atende pelo nome de Lúcifer. No Alcorão, Iblis. Nas escrituras védicas do hinduísmo, são os asuras (demônios). Segundo a Bíblia, Lúcifer fazia parte da corte celeste, onde gozava de grande prestígio. Porém, quando chegou a hora de eleger o representante de Deus entre as criaturas, o escolhido não foi ele, mas Adão, um simples mortal. De acordo com o Alcorão, Deus teria ordenado que todos se prostrassem diante do primeiro homem. Lúcifer, acompanhado de uma legião de outros demônios, negou-se a fazê-lo. Ele e seu séquito foram banidos da corte depois de uma briga feia, citada pelo Livro do Apocalipse. A história coincide com uma narrativa védica, que conta a batalha cósmica travada entre devas (que podem ser traduzidos como "anjos") e os asuras expulsos ("demônios"). Assim se inaugurava o drama da criação.

Nome e rosto

Os hebreus o chamavam de satan; os árabes, de shaitan. Era a mesma palavra e significava "adversário" ou "acusador". Definições com palavras bem mais "diabólicas" ou "demoníacas" tiveram de ser importadas do grego a partir do século 2. Diabolos carregava uma conotação bem negativa, podendo ser traduzida como "o difamador" ou "o separador". Outra palavra, daimon, originou "demônio". O daimon, "gênio" ou "espírito" na religião grega, correspondia a potencialidades da alma, tanto as boas quanto as más. Inserida na Bíblia, passou a se referir a seres exclusivamente maus.

Várias outras palavras também foram utilizadas para designá-lo. Belzebu, ou "senhor das moscas" em hebraico, era um deus de uma religião antiga da Palestina. Idem para Belial, "o príncipe das trevas" - provavelmente derivado de Belili, uma deusa mesopotâmica. O diabo também é chamado de Serpente (no Gênesis), Grande Dragão Vermelho (no Apocalipse), Espírito Imundo (no Evangelho de São Marcos) e Espírito da Mentira (segundo São Paulo).

Já para representar sua imagem, a principal inspiração veio da demonologia assírio-babilônica. De acordo com a historiadora americana Elaine Pagels, uma das entidades preferidas pelos artistas da Antiguidade foi o sinistro Pazuzu, filho de Anu, rei dos espíritos malignos da antiga religião babilônica. É ele quem aparece no início do filme O Exorcista (1973). O diabo também foi representado por cabras, cobras e crocodilos (veja quadro na próxima página). Por fim, no século 4, durante um concílio da Igreja na cidade de Toledo, ele foi descrito pela primeira vez com seu visual clássico: chifres, rabo, tridente em punho, cor avermelhada ou negra.

Enquanto se expandia, o cristianismo estimulava histórias de contatos pessoais com demônios. Os fiéis ficavam assombrados com casos como o do egípcio Santo Antão, nascido por volta de 250, que passou parte da vida trancado em tumbas de cemitérios. Segundo a tradição, ele foi torturado por demônios durante 17 anos.

Identidade

Na Idade Média, o problema do mal (e do diabo) foi discutido pelas mentes mais brilhantes da escolástica, como Santo Anselmo da Cantuária, São Tomás de Aquino e John Duns Scott. Um consenso oficial da Igreja sobre o tema foi obtido no quarto Concílio de Latrão, realizado em 1215. Segundo os teólogos então reunidos na cidade italiana, "o diabo e os outros demônios tinham sido criados bons em sua natureza por Deus, mas que, por sua própria vontade, haviam optado pelo mal".

A essas alturas, o diabo do cristianismo, descrito com tamanho cuidado, já se diferenciava bastante dos seres malignos de outras religiões. Para islâmicos, hindus e budistas, o mal e as criaturas malignas continuavam sendo o elemento de imperfeição da criação. Para os cristãos, ao contrário, ele passou a ter identidade e personalidade bem mais claras. Era questão de tempo para que, na Europa medieval, o Tinhoso repaginado ganhasse simpatizantes.

De acordo com o historiador americano Nesta Webster, em Secret Societies and Subversive Movements ("Sociedades secretas e movimentos subversivos", inédito em português), as seitas de adoradores do diabo conheceram o auge a partir do século 14. Na Alemanha, na Itália e na França, existiu a ordem dos Luciferinos, que pregava que o filho dileto de Deus não era Jesus, mas sim Lúcifer (que seria "o portador da luz"). Na Itália, adeptos do mesmo movimento fundaram uma seita chamada La Vecchia Religione ("a velha religião"). No decorrer de suas missas negras, o pão consagrado na tradicional eucaristia católica era dado a ratos e porcos.

Nessa época, o mais infame satanista foi um grande herói da França, o barão Gilles de Rais. Nascido em 1404, ele havia sido companheiro de Joana D’Arc nas campanhas militares de expulsão dos ingleses, mas enlouqueceu depois da morte da mártir. Passou a andar na companhia de um italiano de má fama, conhecido apenas como Prelati, com quem se iniciou nas chamadas, na época, "artes negras", como quiromancia e previsões astrológicas. Pouco tempo depois, diversas crianças, filhas de camponeses, começaram a desaparecer na região. Descobriu-se que eram capturadas por capangas do barão e mortas com requintes de crueldade em rituais para o diabo. De Rais acabou enforcado e queimado em 1440.

Reação católica

A Igreja não tardou a lançar um contra-ataque contra os seguidores do coisa-ruim. No fim do século 15, apareceram os manuais da Inquisição, como De Pythonicis Mulieribus, de 1489, e Malleus Maleficarum ("O martelo das feiticeiras"), de 1486. Eles explicavam os ritos de feitiçaria e o pacto com o diabo, além de oferecer instruções de como atacar Satanás. Em 1580, num opúsculo sobre feitiçaria, De la Démonomanie des Sorciers, o jurista francês Jean Bodin detalhou o sabá negro, assembleia noturna reunindo feiticeiros e feiticeiras, no qual ocorrem ritos em homenagem ao demo. Além dos seguidores do capeta, os alvos eram os íncubos e súcubos, como eram conhecidos os diabretes que supostamente mantinham relações sexuais com seres humanos, e as pessoas que sofriam de possessão demoníaca.

Casos em que o capeta ocupava o corpo do fiel eram considerados comuns e ocorriam nos lugares mais insuspeitos. Foi o que aconteceu no convento de Loudun, no século 17. As freiras tomadas apareciam ao público gritando palavras sacrílegas, principalmente contra a Virgem Maria. As sessões de exorcismo reuniram, no exterior do convento, mais de 2 mil pessoas, que podiam apenas ouvir os gritos e gemidos das freiras possuídas dentro do recinto monástico. Um abade que presenciou os exorcismos narrou em carta que um dos demônios possessores, chamado Asmodeus, se contorceu tanto dentro do corpo de uma pobre freira, durante uma das sessões, que "o seu rosto inchou três vezes o tamanho normal".

As ações do capeta e de seus asseclas só sossegaram a partir do século 18, com o Iluminismo. "Foi quando todas as crenças perderam força", diz Maria Cristina Longinotti, estudiosa de religiosidade popular na Universidade de Córdoba, na Argentina. O cientista que mais contribuiu para desmistificar o diabo foi Sigmund Freud (1856-1938), o pai da psicanálise. Ele escreveu um estudo sobre o tema, Uma Neurose da Possessão Demoníaca no Século 17, no qual analisava o caso do pintor Christoph Haitzmann, que supostamente fizera um pacto com o demo. "Aquilo que, nas eras passadas, pensava-se ser espíritos demoníacos, hoje sabemos ser impulsos negativos que foram rejeitados e reprimidos", afirmou o doutor Sigmund Freud.

O tinhoso é pop

Apesar dessas explicações todas, que limitaram a crença em Satanás como um ser real, foi no século 20 que ele alcançou a maior popularidade em sua controversa carreira. Por exemplo: em 1966, na Califórnia, Anton Szandor LaVey fundou a Igreja de Satã. Em 1969, escreveu a Bíblia Satânica, que se transformou em best seller alternativo entre alunos universitários americanos. Hoje a celebridade mais famosa, entre os seguidores da Igreja, é o cantor de rock Marilyn Manson. No passado, o ator Sammy Davis Jr., membro da inseparável turma de Frank Sinatra, era bastante chegado a Michael Aquino, especialista em guerra psicológica do Exército americano e fundador do Templo de Set, dissidência light da Igreja de Satã.

De acordo com uma biografia publicada recentemente, o cantor e compositor John Lennon teria feito um pacto com o diabo em 1960, para que os Beatles obtivessem "mais fama do que Elvis", nas palavras do roqueiro. Anos depois, o cineasta britânico Kenneth Anger seduziu os Rolling Stones. Mick Jagger e Keith Richards chegaram a compor uma música para um de seus filmes, Lucifer Rising ("Ascensão de Lúcifer"). A canção se chamou Invocation to my Demon Brother ("Invocação ao meu Demônio Irmão"). Uma visita da banda ao Brasil inspirou a outra faixa satânica, bem mais famosa, em que o demo se apresenta em primeira pessoa: Sympathy for the Devil.

Entre cidadãos médios, o assunto também está presente em pleno século 21, sobretudo nos Estados Unidos. A TV local tem dado amplo espaço ao tema, do programa jornalístico 60 Minutes até a apresentadora Oprah Winfrey. E os adeptos de formas de satanismo no país são mais de 10 milhões. "O problema do diabo é, em última análise, o problema do mal", diz a autora Elaine Pagels, que escreveu o livro As Origens de Satanás depois de perder o marido num acidente de montanhismo, em 1988. "Esse problema está sempre conosco", diz ela. O diabo é uma de suas caras. Assustadora, sinistra, incômoda, mas que não quer nos abandonar.


Faces malignas
As diferentes imagens do diabo nas mais diversas civilizações

Trolls

De acordo com a mitologia escandinava, podem ser gigantes ou anões, mas são sempre figuras demoníacas, dotadas de poderes mágicos que ficam mais fortes durante as horas de escuridão.

Satã ou Satanás

Na versão mais famosa, citada na Bíblia, era um destacado anjo na corte celeste de Deus até se rebelar. Derrotado, refugiou-se com seus seguidores e hoje segue confrontando o Criador.

Lidith

Demônio feminino recorrente em diversas crenças e culturas. Já foi imaginada como um fantasma sugador de sangue. Em alguns relatos, teria sido a primeira mulher de Adão, depois substituída por Eva.

Gog e Magog

Demônios de feições caninas das religiões semitas são citados no Antigo Testamento. Segundo uma crença muito popular entre os muçulmanos, eles foram aprisionados pelo profeta Abraão e, depois, por Alexandre, o Grande.

Belial

Príncipe das trevas segundo o Alcorão, pode ser chamado de Beliel ou Baal. Também é citado na Bíblia: pessoas más são chamadas pelo profeta Samuel de "homens de Belial".

Asuras

Seres diabólicos do hinduísmo e do budismo. Foram expulsos do céu por anjos (devas) quando se rebelaram contra ordens divinas. São o equivalente aos "anjos caídos" da tradição semita.

Harit

Demônio feminino, tinha muitos filhos, que alimentava com os corpos de outras crianças. Por interferência de Buda, mudou de lado e passou a proteger todos os pequenos.

Ahri Man

O princípio do mal segundo o mazdeísmo, religião da antiga Pérsia. De acordo com essa crença, no princípio de tudo existiam dois espíritos opostos. Ahura Mazda reunia o bem e a luz e Ahriman, o mal e a escuridão.

Mefisto'Jeles

O nome do diabo na literatura da necromancia do fim da Idade Média. Deriva do hebraico mephir, "destruidor", e tophel, "mentiroso". É o demônio com quem Fausto, o personagem de Goethe, faz um pacto.

Kaukas

Crença popular lituana e finlandesa. Duende muitas vezes travesso, mas em outras ocasiões maligno. Incita os homens à cobiça e os induz a cometer assassinatos.

Zoológico infernal
Os principais disfarces animais do coisa-ruim

Dragão

Para autores dos primórdios do cristianismo, era uma espécie de serpente que vivia submersa em água pútrida. Outra referência eram os monstros marinhos fenícios, como Behemoth e Leviatã.

Serpente

A ligação surgiu no famoso episódio da expulsão de Adão e Eva do Paraíso, narrado no livro do Gênesis. Sob a forma do réptil, o diabo engana Eva e faz com que ela coma o fruto proibido.

Cabra

Eleita o animal-símbolo do diabo na Idade Média. A identificação é mais antiga: vem da Antiguidade e, no século 5, o pensador cristão Cesário de Arles (470-543) dizia que a aparência caprina lembrava a de muitos demônios.

Gato preto

A relação com Satã começou na Europa, no século 11, por causa de relatos insistentes de aparições de gatos pretos malignos em locais povoados por bruxas.

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